Thursday, October 30, 2008

Tiago

A visita estava feita. Espantados pela riqueza da Igreja de São Francisco, aquietados pela grandeza equilibrada da catedral, escandalizados com o arrasamento laicista da Sé, inebriados pela musicalidade surpreendente da Missa em Nossa Senhora do Rosário dos Negros e estarrecidos com a dimensão da cidade do século XVIII (que nos pareceu maior que Lisboa da altura), encaminhamo-nos com o cansado, despreocupado e saciado gozo turístico para o Elevador Lacerda, que liga a Cidade Alta à Cidade Baixa da cidade de Salvador da Baía de Todos os Santos, para pegarmos o carro alugado que ali tínhamos estacionado duas ou três horas atrás.
De repente sinto um pequeno encontrão, ouço um grito e vejo um miúdo a fugir. O pensamento é rápido nestas situações. Entre ficar no local para onde convergiram as pessoas ou correr atrás do ladrão. Optei por pedir para guardar o pequeno saco que tinha comigo e correr atrás do atacante. Durou pouco tempo a corrida apesar de me espantar a mim próprio pelo avanço que estava a conseguir ter face a um miúdo certamente apavorado. De facto, ao virar-me para trás para me assegurar que estava tudo a correr bem no local do crime, estatelei-me ao comprido na calçada e embora retomasse a perseguição fui rapidamente secundado e substituído por três ou quatro polícias que naqueles poucos segundos conseguiram reagir. Tivesse o mesmo acontecido em Portugal e pediriam para prestar declarações na esquadra mais próxima ou pura e simplesmente teriam dito que não estavam ali para isso mas para defender uma qualquer entrada de banco ou repartição.
A verdade é que nem tivemos tempo de ir embora uma vez certificados que não tinham conseguido levar nada. Em dois ou três minutos fomos informados que o miúdo tinha sido agarrado um quarteirão abaixo por outros polícias, que vindos do outro lado, conseguiram cercar o assaltante. Um estalo forte de um polícia escandalizou-nos mas uma faca grande encontrada no bolso e a necessidade de não desautorizar o fantástico trabalho policial acabou por determinar a nossa queixa junto da esquadra.
Mas a partir daqui tudo muda. O miúdo tem menos de quinze anos e é por isso que é utilizado pela máfia local para roubar os turistas. E porque é miúdo é logo acompanhado pelo irmão um ano mais velho que num gesto estupendo se entrega para o acompanhar declarando que estava de “olheiro” e que, portanto, também estava a participar no roubo. É a décima vez que o Tiago é apanhado e provavelmente continuará a sê-lo, a magoar pessoas e a magoar-se a ele próprio. Vivem com a mãe que trabalha como empregada doméstica e que é boa pessoa segundo a polícia. Mas o aliciamento das pequenas máfias que vemos retratadas no filme “A Cidade de Deus” acaba por afunilar o percurso destas crianças.
Que fazer? Tirei o terço do bolso e dei-o ao Tiago mas o meu espaço de manobra era também limitado e afunilado naquele contexto. Aliás, é naquele contexto que sentimos que o nosso espaço é muito limitado sem a intervenção de Nosso Senhor. É limitado para nós turistas e é limitado para os meninos de rua. Aquele chama-se Tiago e passou a ter nome. A esperança é que venha a ser São Tiago. O que sabemos é que, de acordo com o que vamos aprendendo, está mais perto de o ser do que nós.

Wednesday, October 15, 2008

Paul Krugman e a Crise Finaceira

Paul Krugman da Universidade de Princeton nos Estados Unidos ganhou o Prémio Nobel da Economia 2008, pela sua análise nos padrões de troca entre regiões e pelo sue estudo sobre a localização das actividades económicas. Na verdade trata-se de um reconhecimento pela teoria económica da importância do espaço que há muito vinha a ser levantada pelos especialistas em economia regional e geografia económica. Trata-se também de um desafio a estes últimos investigadores para integrarem mais nas suas análises os métodos e conceitos do espaço estilizado proposto por Krugman. O que o Nobel vem provar, contrariamente ao que era genericamente aceite pela teoria neoclássica do desenvolvimento, é que há razões que a geografia conhece para haver centros mais desenvolvidos e inovadores que atraem pessoas e meios, e periferias menos desenvolvidas e mais conservadoras que exportam pessoas e meios.
Como ligar esta atribuição do Prémio Nobel da Economia com a crise internacional que estamos a observar e a começar a sentir mais perto? Para responder a esta pergunta vamos primeiro tentar explicitar o que sabemos da crise para depois interpretá-la aos olhos dos dizeres de Paul Krugman e, eventualmente, explicitar alguma questão que não tenha sido explicitado pelo Nobel mas que nos apareça como agora como fundamental face aos acontecimentos financeiros recentes.
O que sabemos da crise financeira é que se verificou uma forte quebra de confiança no sistema financeiro que foi motivada por três causas fundamentais: i) Primeiro, a desvalorização efectiva de grande parte do imobiliário em virtude do aumento do preço do combustível ter desvalorizado as casas à medida que se afastam dos centros de comércio e de emprego. ii) Segundo, a perda real de competitividade do mundo ocidental face à China e à Índia o que faz associar esta crise à que existiu nos finais do século XIX quando foi necessário fazer um ajustamento brusco porque, nessa altura, a competitividade dos Estados Unidos já há algum tempo tinha suplantado a da Europa; iii) Terceiro, a incapacidade dos instrumentos de regulação dos mercados financeiros terem acompanhado a evolução destes que foi suportada pela rápida evolução das tecnologias da informação.
Há uns saudosos da intervenção do Estado, do proteccionismo, das empresas públicas e das oligarquias de funcionários, políticos, clientes e dependentes, que julgam que este é o momento para voltar para trás ou que, no caso de Portugal e dos Açores, é a altura para não seguir o que outros já assumiram há anos. No entanto estão enganados pois grande parte da falta de competitividade no ocidente e de Portugal que justificou a crise é devida à ineficiência do Estado e à falta de informação fidedigna sobre a eficiência das grandes empresas cotadas nas Bolsas. E para isso há que dar eficiência à provisão de bens e serviços públicos independentemente da escolha dos cidadãos por mais ou menos bens e serviços públicos, e há que melhorar a informação sobre a eficiência efectiva das empresas o que é muito difícil sem considerar a escala humana da proximidade e do saber, muito para além das chamadas tecnologias da informação que são potenciadoras de mentiras se não tiverem o filtro humano da proximidade e do saber. É neste aspecto que Krugman tem razão e não a tem. É que a proximidade física do anonimato das grandes cidades não tem nada a ver com a proximidade física da interacção entre pessoas que confiam umas nas outras, que manifestamente é mais difícil de encontrar nas grandes cidades. A menos que nas periferias se opte pela mentira como vem sendo hábito nos Açores.

Friday, October 10, 2008

Visigodos

Como é costume todos os anos, estou a passar uns dias de férias no Algarve. Dizem-me que é um desperdício deixar os Açores nesta altura de verão mas também é a única forma de me encontrar com a minha família continental de passagem para o congresso anual da European Regional Science Association onde costumo participar e que este ano se realiza em Liverpool, um sítio fácil de alcançar quer de Lisboa quer de Faro através dos voos baratos e eficazes da EasyJet.
No Algarve a vida passa entre as conversas e os banhos de praia, as conversas e sopas das refeições, mais uma ou outra caminhada que os areais do sul permitem, e um livro ocasional que alguém trouxe para tresler. Nas conversas deixou de haver espaço para a política já que a esperança está cada vez mais numa mudança repentina de regime; uma espécie de revolução que mude o rumo das coisas. Nas refeições ainda há acesso a peixe mas quase todo vem de longe pois as políticas de quotas europeias e a delapidação dos stocks pelos barcos espanhóis eliminou a linha do horizonte iluminado de pequenos barcos de pesca a que costumávamos chamar a “Auto-estrada de Marrocos”. Os banhos são um desconsolo para quem vem dos Açores com a água muito mais fria e muito menos transparente. Resta-nos assim o livro para vos contar.
Este é sobre a “Aventura dos Godos” de Juan António Cebrián, que procura na história daquele povo bárbaro a razão de uma certa hispanidade que eles como os de agora tiveram e têm dificuldade de conseguir. Todos nós pouco mais sabíamos que os Visigodos chegaram à Península um pouco depois dos Alanos, Vândalos e Suevos no princípio do século V e que passado alguns séculos conseguiram criar um reino peninsular que, no entanto, pouco tempo durou antes de ser derrotado pelos árabes no século VIII. Também sabíamos que eram de religião ariana e que só no fim da sua presença se converteram ao catolicismo.
O que foi para mim novidade foi que os visigodos eram pouco mais de 200000 quando a Península tinha cerca de sete milhões de hispano-romanos de religião católica. O que é novo para mim é que estas tribos estavam proibidas de se misturar com a população hispano-romana até ao princípio do século VII e que tiveram muita dificuldade em controlar o actual País Basco, a Cantábria, a Galiza e a Andaluzia. O que é marcante é que a maior parte dos reis desta gente morreu por assassinato e que se tratava de uma monarquia electiva como foi mais tarde retomado em Portugal onde o rei tinha que ser aclamado pelas Cortes. O que me contaram no livro foi de facto o processo de destruição do Império Romano e a longa criação de novos Estados da Europa com as fronteiras e nacionalidades que se mantém até agora. O que também percebi é que a criação dessas nacionalidades é impossível sem o papel da Igreja Católica que estimulou a unificação entre a minoria aguerrida bárbara e ariana e a maioria romanizada e católica. O que vemos é que a divisão da Península no tempo dos Romanos e Visigodos foi marcada pela distância ao Mediterrâneo cabendo alguma unidade às civilizações do Tejo e do Guadiana com capital em Mérida. No entanto a divisão da Península a partir da reconquista cristã é marcada pela distância ao Atlântico que passa a ser o “rio maior” e determinante. E nesse “rio maior” os Açores são a âncora essencial que desilude a sempre efémera unidade hispânica; mesmo no tempo dos visigodos.

Reféns de partidos sem qualidade

A Deolinda Estêvão do PPM diz que a "Terceira está a passar pela maior crise de identidade e de afirmação". O Artur Lima do CDS-PP afirma que a "Terceira não é prioridade para os socialistas". Victor Silva da CDU reafirma que "A Terceira não tem sido tratada como merece". Carlos Costa Neves do PSD diz que a "Ilha Terceira desconsiderada pelo actual poder socialista". Um pouco mais indirecto Paulo Mendes do BE contrapõe que "O governo confunde desenvolvimento com turismo” mas se tivermos presente que o turismo tem crescido em São Miguel e que o desenvolvimento não está a ocorrer nas ilhas, a ideia do Bloco é semelhante à dos outros partidos. Para rematar esta atitude pedincha e lamurienta proposta aos Terceirenses pelos vários partidos lá vem a proposta pedincha e lamurienta de Carlos César face ao Continente solicitando a”cumplicidade e apoio” do país à autonomia. A única diferença vem do PDA que exige a transferência para as Ilhas das competências que muito provavelmente se exercerão melhor aqui como é o caso da justiça. A dúvida que tenho é se casos graves de justiça não seriam enviesados por interesses locais já que, sintomaticamente, casos chocantes como a pedofilia ou a droga são sempre denunciados gente de fora e encobertos por quem está próximo.
O único partido que parece ter uma razão humilde, é o Paulo Jorge do MPT quando afirma que os "Açorianos estão reféns de partidos sem qualidade". Já me dizia o António Sousa da RDP há anos, que os açorianos são pessoas muito sérias mas os governos, e portanto os políticos, são a brincar. De facto não faz sentido a choraminguisse e a lamúria quando todos sabemos que o desenvolvimento está associado muito mais à produtividade do que ao consumo de bens transferidos pelo Estado com o nosso dinheiro e com o dinheiro dos outros. Mais, todos sabemos que o dinheiro que os outros transferem para benefício de pouco na Região foi-nos roubado a todos em capacidade produtiva da terra, do mar e da posição logística vendida aos outros pelos governos regional e da república. Reféns de partidos sem qualidade.

A Força da Água

O Partido Socialista está a perder votos todos os dias na Ilha Terceira devido aos cortes sucessivos no abastecimento de água que denunciam a inadequação da política seguida ao longo dos último anos quer de âmbito municipal quer de âmbito regional. Nas outras áreas da governação os sucessos também não são por aí além pelo menos para esta ilha do meio e é por isso que toda a gente começa a hesitar entre a abstenção e um voto num partido que tenha tido menos responsabilidades governamentais. A verdade é que há muitos para escolher e desta vez os votos nos partidos mais pequenos não são perdidos por virtude da existência do círculo regional.
Na verdade, se os povos fossem racionais votariam contra o Partido Socialista na Ilha Terceira e contra o George Bush na América. Os primeiros forçam artificialmente a centralidade de São Miguel por intermédio das empresas monopolistas que controlam nomeadamente a SATA e a EDA e, ainda por cima, enchem as ilhas de obras inúteis deixando para segundo plano aquelas que deveriam ser feitas como acontece com o essencial abastecimento de água. Os segundos levam cinco anos a perceber um pouco melhor a forma de encarar a guerra no Iraque e ainda não entenderam que a raiz da crise americana está na desvalorização efectiva de muitas casas por virtude do aumento galopante do custo de transportes em cidades muito espraiadas onde é difícil introduzir transportes públicos. De facto enquanto que um americano médio anda 70 quilómetros por dia um europeu anda menos de metade desse valor. E como o custo dessa distância duplicou muitas das casas americanas situadas mais longe do centro deixaram de ser vendáveis e perderam um valor irrecuperável.
Esta é a vantagem substancial das crises. Da crise da água na ilha Terceira e da crise da habitação nos Estados Unidos. A primeira obriga a pensarmos sobre as nossas decisões colectivas e a deixarmo-nos embasbacar menos por obras de fachada que ficam sempre bem nas maquetas. A segunda obriga os americanos a repensar o modelo de desenvolvimento das cidades que tentaram impor como o “American Way of Life”. As Torres Gémeas mostraram as suas limitações em termos de segurança. A cidade de Nova Orleãs mostrou o desastre da gestão de toda a bacia do Rio Mississipi para além da falta de gestão urbana. E o colapso do mercado habitacional avisa-nos para o erro fatal das cidades baseadas no automóvel e nos guetos e condomínios de subúrbio.
O estranho é que, tanto nos Açores como nos Estados Unidos a maior parte dos Universitários tende a pensar como o poder ficando implicitamente co-responsabilizado com os desastres que vão ocorrendo. Na Terceira terão feito os estudos de impacto ambiental disto e daquilo mas nunca vi apresentarem alternativas às soluções únicas trazidas pela falta de criatividade política. Na América, para meu espanto, num Congresso a que fui sobre urbanismos em Julho deste ano, nunca levantaram a hipótese de que a crise que têm em mãos esteja associada ao desenho das cidades. Parece que a dependência universitária dos fundos públicos está a toldar as mentes e a condicionar o espaço de liberdade que a ciência exige. Só nos resta o povo para criar a mudança inesperada pelo voto. Ou então a força da água e do custo de energia que deixa as pessoas sujas e as casas sem valor.